quarta-feira, 29 de junho de 2011

COM A DEVIDA VÉNIA Frutos da experiência

Transcrição autorizada do blogue Duas ou Três Coisas
"Desde logo, tente rodear-se de gente que tenha a certeza de ser, simultaneamente, competente, fiel e crítica. E, se possível, que escreva um bom português, uma língua antiga em rápida extinção na nossa administração pública. Junte pessoas que tenham a liberdade e a coragem para lhe dizer aquilo que até pode não lhe apetecer ouvir, mas que é essencial que você ouça; embora se reserve sempre o seu direito de não concordar e decida fazer exactamente o contrário. Não hesite em mudar de opinião, quando os argumentos forem inteligentes e convincentes, mesmo se oriundos de colaboradores muito mais jovens. Sabe do que falo, claro...
Carta a um amigo
Há um palco que é apenas seu: dirija a peça,
oriente sem tibiezas os artistas - e alguns são mesmo
uns "verdadeiros artistas"...

Francisco Seixas da Costa *

Meu Caro

Você acaba de entrar numa nova vida, e logo num tempo bastante difícil, em que muito se exigirá de si, dos seus conhecimentos e do seu bom-senso, da sua integridade e da sua força de vontade. Conhecendo-o bem, julgo ser "the right man in the right place" e, diria mesmo, "at the right time"- e você sabe de mim o suficiente para ter a certeza de que só digo isto porque sinceramente o penso. Atrevo-me mesmo a afirmar, não sem algum orgulho, que, até agora, você teve sempre uma boa escola.

Porém, como em tudo na vida, só na água se aprende a nadar. Ver os outros no jogo é muito instrutivo, até para evitar cometer alguns dos erros observados. Mas as coisas são diferentes quando se "está lá", quando se é o responsável, quando todos olham para si, para o bem e para o mal. Principalmente para o mal, como sabe.

Você começa agora. Numa bela frase que fez escola, Jaime Gama dizia que "não há uma segunda oportunidade para se criar uma primeira impressão". Tendo a concordar, embora não em absoluto, porque as imagens fixam-se diacronicamente no juízo das pessoas e o tempo ajuda a sedimentar a solidez de quem é realmente consistente. Você dir-me-á, com a sua proverbial modéstia, que isso o preocupa pouco e que, no essencial, quer apenas conseguir fazer bem aquilo que lhe propuseram. Mas, como já terá visto de forma muito crua, "em política, o que parece é", como dizia o manhoso de Santa Comba. É triste, mas é assim.

Para um observador desprevenido, a sua tarefa até pode parecer fácil. Mas você sabe bem melhor que muitos que, para além do que a opinião publicada ou comum intui, há aí desafios externos muito sérios pela frente, face à vontade de alguns de mudar o paradigma do processo colectivo, interessados que estão em assegurar a continuidade do respectivo poder, através da garantia lampedusiana de que "alguma coisa tem de mudar para que tudo continue na mesma".

Não quero parecer "patronizing", mas não resisto a deixar-lhe algumas notas: conselhos ou frutos da experiência, tome-os como quiser. Faço-o agora porque não terei nem necessidade nem ocasião de lhe dar quaisquer opiniões futuras, porque, como você e muitos outros bem sabem, é meu arreigado e inabalável hábito deixar deliberadamente de procurar ou frequentar quem assume funções elevadas.

Desde logo, tente rodear-se de gente que tenha a certeza de ser, simultaneamente, competente, fiel e crítica. E, se possível, que escreva um bom português, uma língua antiga em rápida extinção na nossa administração pública. Junte pessoas que tenham a liberdade e a coragem para lhe dizer aquilo que até pode não lhe apetecer ouvir, mas que é essencial que você ouça; embora se reserve sempre o seu direito de não concordar e decida fazer exactamente o contrário. Não hesite em mudar de opinião, quando os argumentos forem inteligentes e convincentes, mesmo se oriundos de colaboradores muito mais jovens. Sabe do que falo, claro...

Não se deixe nunca tentar por tiques de auto-suficiência ou de autoridade (que seriam estranhos em si, em qualquer caso), por reflexos de sobranceiro "déjà vu" ou por formalismos compensatórios da sua idade - como, ridiculamente, já vi emergir em (então) jovens figuras políticas, pouco à vontade com as suas novas responsabilidades. Em política, a idade que se tem é a da autoridade que soubermos transmitir, sendo a juventude, aliás, o único "defeito" que passa sempre com o tempo.

Atente bem nas lições do passado, porque nada começa hoje, embora a História nunca se repita, salvo para os que a lêem de forma preguiçosa ou dogmática. Procure decifrar bem a "agenda" de quem cruzar pelo mundo, perceba as suas motivações profundas, sem se deixar enredar em teorias conspirativas, mas igualmente sem cair em perigosas ingenuidades. Não se acomode a supostas inevitabilidades, não receie dizer "não" quando entender que isso é importante, não use "langue de bois", chame as coisas pelo nomes e não se importe de ficar isolado, nem tenha a tentação de ser simpático em matérias de Estado. O interesse do país está sempre acima dos nossos humores.

Claro que você também sabe que, à sua volta, há adulações que vêm por aí, com os "yes men" e as "yes women" que lhe darão a "música" agradável aos seus ouvidos, que acharão "genial" a entrevista que você percebeu que saiu menos boa, que dirão "o máximo" do discurso que fizer, por mais banal que lhe tenha saído. Relativize sempre tudo isso.

Seja muito firme, não dando, logo desde o início, o mínimo espaço para a sobrevivência funcional de distâncias derivadas dos tempos da carreira de onde você é oriundo (e onde agora não está inserido, lembre-se sempre!). Corrigir o erro, depois, será muito mais difícil e penoso. Exerça em pleno a sua autoridade, porque, como escreveu Balladur num recente livro, "le pouvoir ne se partage pas".
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Alguns, de forma mais ou menos explícita, tentarão preservar fatias de decisão que se habituaram a gerir, quase a seu bel-prazer. Corte-lhes as "vazas" e, estabeleça, desde o primeiro segundo, sem tibiezas e ambiguidades, as suas novas regras. É que se o "pacote" de responsabilidades passa a ser seu, toda a decisão também lhe cabe a si, na gestão como na definição das políticas. E esteja também atento aos curto-circuitos hierárquicos, essa insidiosa forma de se sustentarem influências "por cima" de si, com "shortcuts" de oportunidade. Sei bem do que falo e você também sabe como, no passado, foram tratadas, com êxito e algum gozo, algumas derivas dessa índole.

Mantenha e frequente os amigos de sempre, comporte-se com eles com a naturalidade habitual. Eles podem ser-lhe muito úteis na "leitura" da realidade exterior de que, forçosamente, ficará um pouco mais distante. E aí estarão, ao virar da esquina, quando se esgotar a transitoriedade das funções que agora vai ocupar. Eles serão a sua eterna e insubstituível "almofada" afectiva.

Agora, um assumido conselho: não projecte a ideia de ser "o homem" de ninguém, o "remote controle" de outras instâncias, uma figura tutelada, actor secundário à espera das deixas de outros. Sem incorrer na mínima quebra de lealdade ou de disciplina face à orientação de quem tem legitimidade para lha dar, perceba que há um palco que agora é apenas seu: dirija a peça, oriente sem tibiezas os artistas - e alguns são mesmo uns "verdadeiros artistas".... É que, das palmas ou dos apupos que se vierem a ouvir, você está condenado a só poder partilhar as primeiras.

De igual modo, seja totalmente livre: evite a tentação de caminhar para a construção de um qualquer proselitismo, para a criação de "equipas" de fiéis em seu redor, esse viciado mundo, tão típico da profissão que vai co-tutelar, cuja cultura dominante se apoia em esferas de influência, em mini-nepotismos conjunturais, feitos de atribuição arbitrária de cargos e funções, a troco de lealdades com preço certo - nas promoções ou nas colocações seguintes. Ouça amigos próximos, mas decida sempre sozinho. Trate bem toda gente, mesmo os mais "sinistros", mas apenas enquanto assim o merecerem. Quanto tal não acontecer, passe então a tratá-los como realmente merecem, sem contemplações ou moratórias. O tempo das indecisões só joga contra si.

Ah! e não se esqueça: ria-se, divirta-se, mantenha um bom ambiente no trabalho e trate as coisas com a leveza que se justifica, sem perder o humor e a capacidade de exercer ironia. Até sobre si próprio. E, nunca por nunca, caia na tentação de dizer que está a fazer um sacrifício, um serviço pelo qual o Estado e o país lhe devem ficar reconhecidos. Você é que deve estar grato a Portugal por lhe ter dado a honrosa possibilidade de o servir.

Meu caro, como diria o Sérgio Godinho, "este é o primeiro dia do resto da sua vida". E só há uma, lembre-se! E porque esta vida são dois dias, aproveite bem as noites! Não esqueça a família, não lhe atafulhe os sofás com papéis cor-de-rosa, pela noite dentro: saia, jante fora, divirta-se, beba um copo, fale com amigos de outras coisas que não política, viaje e leia muito. Pode crer que o mundo não vai parar, só porque você insiste em ser uma pessoa normal.

Não lhe vou desejar felicidades profissionais e políticas, porque isso seria redundante com o que você sabe que eu penso. Desejo-lhe saúde, alegria, vontade e sorte. O resto - inteligência, honestidade, sabedoria, rigor e dedicação - você já tem.

E mando-lhe um forte abraço de amizade, esperando agora só o voltar rever, com calma e sem agenda, daqui a quatro anos, para então lhe dar conta dos meus ócios na reforma. Aproveite o tempo bem! O seu sucesso será o nosso.

Francisco

PS - Vou oferecer-lhe um clássico do Gerald Kaufman, com mais de duas décadas, intitulado "How to be a Minister". Esclareço, para leitores menos atentos, que, sendo um livro inglês, "minister" significa, entre nós, "secretário de Estado". "Bien entendu"...

* Embaixador, Chefe da Missão Diplomática de Portugal em Paris

domingo, 26 de junho de 2011

COM A DEVIDA VÉNIA Grécia, Islândia, Irlanda e... Portugal

Não coloca Portugal no "mapa", mas depreende-se.
"Não há dúvida de que países pós-soviéticos estão a observar, bem como os latino-americanos, africanos e outros devedores soberanos cujo crescimento tem sido atrofiado pelos programas de austeridade predatórios impostos pelo FMI, Banco Mundial e da UE nas últimas décadas. Todos nós deveríamos desejar que a era pós Bretton Woods esteja ultrapassada. Mas não estará até que a população grega siga a da Islândia dizendo não – e a da Irlanda finalmente acorde."
Lição sobre esta Europa 
Em causa está hoje o "análogo financeiro": a servidão da dívida.

Michael Hudson *

Quando a Grécia substituiu o dracma pelo euro, em 2000, a maior parte dos eleitores era pela adesão à eurozona. A sua esperança era que a mesma garantisse estabilidade e que isto promoveria a elevação dos salários e dos padrões de vida. Poucos viram que o grande obstáculo era a política fiscal. A Grécia fora excluída da eurozona no ano anterior devido ao incumprimento do critério do Tratado de Maastricht (1992) para a entrada na UE, de limitar os défices fiscais a 3 por cento do PIB e a dívida governamental a 60 por cento.

O euro também tem outros problemas fiscais e monetários graves, desde o princípio. Há pouca consideração sobre as economias mais ricas da UE ajudarem a trazer aquelas menos produtivas ao mesmo nível, tal como fizeram os Estados Unidos com suas áreas deprimidas (como no resgate da indústria automobilística em 2010) ou quando o governo federal declara um estado de emergência devido a inundações, tornados ou outras perturbações. Em comparação com os Estados Unidos e na verdade quase todos os países, a "ajuda" da UE é em grande medida egoísta – uma combinação de promoção de exportações e salvamentos para economias devedores pagarem a bancos dos principais países credores da Europa: Alemanha, França e Holanda.

A carta da UE proíbe o Banco Central Europeu (BCE) de financiar défices governamentais e impede (na verdade, "salva") os membros de terem de pagar pela "irresponsabilidade fiscal" de países que incidem em défices governamentais. Esta política fiscal "dura" foi o preço que os países de rendimento mais baixo tiveram de subscrever quando aderiram à União Europeia.

Ao contrário também dos Estados Unidos (ou quase qualquer país), o parlamento da Europa é meramente cerimonial. Ele não tem poder para estabelecer e administrar impostos à escala da UE. Politicamente, o continente permanece uma federação à deriva. Espera-se que cada membro descubra o seu próprio caminho. O banco central não monetiza défices e há uma partilha federal mínima com os estados membros. Os gastos deficitários públicos – mesmo para investimento de capital em infraestrutura – devem ser financiados incorrendo em dívida, taxas de juro crescentes à medida em que os défices incorridos se tornam mais arriscados.

Isto significa que despesas com transportes, energia e outras infraestruturas básicas que eram financiados publicamente na América do Norte e nas principais economias europeias (proporcionando serviços a taxas subsidiadas) devem ser privatizados. Os preços para estes serviços devem ser estabelecidos suficientemente alto para cobrir juros e outros encargos de financiamento, altos salários e bónus e serem administrados para o lucro – na verdade, para a extracção de renda pois a autoridade regulamentar pública é assim desactivada.

Isto torna menos competitivos países que vão por este caminho. Também significa que eles incorrerão em dívida para com a Alemanha, França e Holanda, causando as tensões financeiras que agora estão s levar a confrontações com governos democraticamente eleitos. Está em causa se a Europa deveria sucumbir ao planeamento centralizado – na ala direita do espectro político, sob a bandeira dos "mercados livres" definidos como economias livres de regulamentação pública de preços e de supervisão, livre da protecção ao consumidor e livre de impostos sobre os ricos.

A crise para a Grécia – assim como para a Islândia, Irlanda e economias praguejadas por dívidas impostas – verifica-se quando os lobbys dos bancos pedem que os "contribuintes" paguem a salvação de especulações que correram mal, e dívidas do governo que decorrem em grande medida de cortes e desrugulamentação e auditoria fiscal para grandes grupos e para o imobiliário, comutando o fardo fiscal bem como o fardo da dívida para o trabalho e para a indústria.

O poder crescente do sector financeiro em alcançar este favoritismo fiscal está a paralisar economias, conduzindo-as outra vez a depender ainda mais do financiamento da dívida para permanecerem solventes. A ajuda é condicionada a que os países receptores reduzam os seus níveis salariais ("desvalorização interna") e liquidem as suas empresas públicas em sectores vitais privatizando-as e deixando-as assim ás vicissitudes do chamado "mercado livre".

A visão em túnel que guia estas políticas é auto-reforçadora. A Europa, a América e o Japão retiram os seus gestores das fileiras de profissionais que deslizam para trás e para a frente, entre os bancos,as grandes empresas e os ministérios das finanças – a que os japoneses chamam "descer do céu" para o sector privado onde os prémios anuais são inimagináveis. Não se trata simplesmente de pagamento atrasado por serviços passados. A sua experiência de governo e os seus contactos ajudam-nos a influenciar a burocracia pública restante e fazer lobby das suas substituições oportunistas para promover políticas fiscais e monetárias favoráveis ao sector financeiro – isto, para algemar o governo e desviar a regulamentação e a tributação do sector financeiro, do imobiliário e dos monopólios clientes, além de utilizar o poder tributário e de criação de dinheiro para proporcionar salvamentos quando ocorre o inevitável colapso financeiro no momento em que a economia contrai-se abaixo dos níveis de ruptura, no terreno da situação líquida negativa.

Políticas fiscais regressivas – comutando impostos sobre os ricos e a propriedade para o trabalho – provocam défices orçamentais financiados pela dívida pública. Quando possuidores de títulos puxam a tomada, a pressão resultante força governos a liquidarem dívidas com a venda de activos públicos para compradores privados (a menos que os governos repudiem a dívida ou recuperem-se restaurando a tributação progressiva). A maior parte de tais vendas é feita a crédito. Isto beneficia os bancos com a criação de um mercado de empréstimos para a compra de umas empresas pelas outras (buyouts). Enquanto isso, os juros absorvem os rendimentos, privam o governo de receita fiscal que anteriormente podiam receber. A prenda fiscal para os financeiros baseia-se na má política de tratar o financiamento da dívida como um custo necessário de fazer negócio, não como uma opção política – uma opção que na verdade é induzida pela distorção fiscal de fazer com que os pagamentos de juros sejam fiscalmente dedutíveis.

Os compradores contraem empréstimo para se apropriarem de "bens públicos" ("the commons") do mesmo modo como licitam pelo imobiliário comercial. O vencedor é quem quer que seja que consiga o maior empréstimo para buyout – prometendo a maior parte da receita como pagamento ao banco sob a forma de juros.

Assim o sector financeiro acaba no fim por ficar com a receita até então paga a governos como impostos ou taxas de utilização. Isto é eufemizado como um denomonado "mercado livre".

Promover o sector financeiro a expensas da economia

A resultante alavancagem da dívida não é um problema solúvel. É uma quadratura da qual as economias só podem escapar pela concentração na produção e no consumo ao invés de meramente subsidiar o sistema financeiro ao permitir que os actores façam dinheiro a partir de dinheiro através do inflacionamento de preços de activos nos teclados electrónicos do crédito livre.

A austeridade causa desemprego, o qual reduz salários e impede o trabalho de participar no excedente (surplus). Isto permite às empresas forçar os seus empregados a trabalhar horas extras e mais arduamente a fim de obter ou manter um emprego, mas não eleva realmente nem a produtividade nem os padrões de vida do modo idealizado um século atrás. Aumentar os preços da habitação a crédito – exigindo maiores dívidas para o acesso à propriedade da casa – não é prosperidade real é uma virtualidade perversa.

Contrastar a economia "real" com a do sector financeiro exige estabelecer distinções entre o crédito e o investimento produtivo e aquele não produtivo.

É necessário entender o conceito de renda (rent) económica como um retorno institucional e político ao privilégio sem um custo de produção correspondente. A economia política clássica era toda voltada para a distinção entre o rendimento ganho do rendimento não ganho, entre o valor do custo e o preço de mercado. Mas os "lobistas" financeiros negam que qualquer rendimento ou riqueza proveniente do juro cobrado seja parasitária. As contas do rendimento e do produto nacional (national income and product accounts, NIPA) não estabelecem tal distinção. Este ponto cego não é acidental. Ele é a essência da teoria económica pós-clássica. E ele explica porque é que a Europa está paralisada.

O modo pelo qual foi criado o euro, em 1999, reflecte esta visão superficial. As regras fiscais e financeiras de Maastricht maximizam o mercado do empréstimo comercial ao impedir bancos centrais de fornecerem a governos (e portanto à economia) créditos para crescerem. Os bancos comerciais são a única fonte de financiamento de défices orçamentais – definidos de modo a incluir investimento de infraestrutura em transportes, comunicações, energia e água. A privatização destes serviços básicos impede governos de os fornecerem a taxas subsidiadas ou gratuitamente. Assim a estradas são transformadas em estradas "portajadas", cobrando taxas de utilização que são prontamente monopolizadas por interesses de um grupo económco.

As economias são transformadas em conjuntos de portagens, pagando os seus encargos de acesso como juros a credores. Estas rendas extractivas tornam de alto custo as economias privatizadas. Mas para o sector financeiro isto é "criação de riqueza". Ele é avançado ao desagravar fiscalmente pagamentos de juros a bancos e possuidores de títulos – ainda que agravando nesse processo os défices fiscais.

A crise orçamental grega em perspectiva

Um dos legados fiscais da junta de coronéis (1967-74) foi a evasão fiscal por parte dos mais poderosos. Os partidos "amistosos para com os negócios" que se seguiram foram relutantes em tributar a riqueza. Um relatório de 2010 declarava que aproximadamente um terço do rendimento grego não era declarado, com "menos de 15 mil gregos declarando rendimentos superiores a €100 mil, apesar de dezenas de milhares viverem em opulenta riqueza nos arredores da capital. Uma nova iniciativa dos socialistas para identificar proprietários de piscinas através do Google Earth recebeu uma resposta virulenta quando gregos investiram em relva falsa, camuflagem e asfalto a fim de esconder os passivos fiscais dos espiões no espaço". (Helena Smith, “The Greek spirit of resistance turns its guns on the IMF,”The Observer, May 9, 2010.)

Como a ditadura militar comprimiu a despesa pública para níveis mais baixos do que a norma europeia, a infraestrutura precisava ser reconstruída – e isto exigiu défices orçamentais. O único meio de evitar incorrer em défices teria sido fazer com que os ricos pagassem os impostos que deveriam. Mas pressionar a extracção da despesa pública até o nível que os gregos ricos estavam dispostos a pagar em impostos não parecia politicamente factível. (Desde a década de 1980 quase nenhum país pôs em vigor as políticas fiscais da Era Progressista). O limite de Maastricht de 3 por cento dos défices orçamentais recusa contabilizar despesas de capital dos governo como formação de capital, com base na suposição ideológica de que todos os gastos de governo são uma sobrecarga ruinosa e de que só o investimento privado é produtivo.

O caminho de menor resistência
era entrar no engano fiscal...

Banqueiros da Wall Street ajudaram os partidos "conservadores" (isto é, fiscalmente regressivos e financeiramente perdulários) a esconder a extensão da dívida pública com a espécie de contabilidade lixo de que engenheiros financeiros fizeram trabalho pioneiro para a Enron. E como é habitual quando está envolvida a fraude financeira na busca de taxas e lucros, a Goldman Sachs estava no meio. Em Fevereiro de 2010 a revista alemã Der Spiegel revelou como a firma havia ajudado a Grécia a esconder a subida da dívida pública, hipotecando activos num negócio intrincado de derivativos – legal mas com a intenção encoberta de contornar a limitação de Maastricht quanto a défice. "As regras de relatar do Eurostat não registam exaustivamente transacções envolvendo derivativos financeiros", de modo que a obrigação da Grécia aparecia como um swap cruzado de divisa (cross-currency swap) ao invés de uma dívida. O governo utilizou entidades fora do balanço e derivativos semelhantes aos que bancos islandeses e irlandeses utilizariam posteriormente para se permitirem desaparecimentos fictícios de dívidas e uma ilusão de solvência financeira.

A realidade, naturalmente, era uma dívida virtual. O governo foi obrigado a pagar à Wall Street milhares de milhões de euros com base em futuras taxas de aterragem no aeroporto e futuras taxas da lotaria nacional pois "os chamados swaps cruzados de divisas ... vencem e aumentam exponencialmente o défice já de si majorado do país". (Beat Balzli, “How Goldman Sachs Helped Greece to Mask its True Debt,” Der Spiegel, February 8, 2010. O relatório acrescenta: "Um vez, despesas militares gigantescas foram deixadas de fora e em outra vez milhares de milhões em dívidas de hospitais". Traduzido em linguagem directa, o negócio deixou o défice do sector público da Grécia a 12 por cento do PIB, quatro vezes o limite de Maastricht.

A utilização de derivados para engendrar uma contabilidade estilo Enron permitiu à Grécia mascarar uma dívida como um "swap" de mercado baseado em opções de divisas estrangeiras, a serem concluídas num prazo de dez 15 anos. À Goldman foram pagos US$300 milhões em taxas e comissões pela sua ajuda na orquestração do esquema de 2001. "Um negócio semelhante em 2000, chamado Ariadne, devorou a receita que o governo arrecadou com a sua lotaria nacional. A Grécia, contudo, classificou aquelas transacções como vendas, não como empréstimos".

O JPMorgan Chase e outros bancos ajudaram a orquestrar negócios semelhantes por toda a Europa, proporcionando "cash adiantado em retorno de pagamentos do governo no futuro, com tais passivos sendo mantidos fora da contabilidade".

O sector financeiro tem interesse em subestimar o fardo fiscal – primeiro, pela utilização da contabilidade do lixo "mark to model" e, segundo, pela pretensão de que o fardo da dívida pode ser pago sem desestabilizar a vida económica.

Porta-vozes financeiros, desde Tim Geithner a Dominique Strauss-Kahn no FMI, afirmaram que a crise de dívida pós 2008 é meramente um "problema de liquidez" a curto prazo (falta de "confiança"), não de insolvência que reflecte uma incapacidade subjacente de pagar. Bancos prometem que tudo ficará certo quando a economia "retornar ao normal" – desde que o governo compre suas hipotecas lixos e maus empréstimos ("investimentos saudáveis a longo prazo") por dinheiro efectivo.

A fraude intelectual em acção

Os lobys financeiros procuram desviar a atenção de eleitores e decisores políticos da percepção de que a "normalidade" não pode ser restaurada sem liquidar as dívidas que tornaram a economia anormal. Quanto mais o fardo da dívida crescer, mais austeridade ampla na economia será exigida para pagar dívidas a bancos e possuidores de títulos ao invés de investir em formação de capital e crescimento real.

A austeridade agrava o problema, ao intensificar a deflação da dívida. Ao pretenderem que austeridade ajuda economias ao invés de destruí-las, os lobys da banca afirmam que mercados em contracção reduzirão taxas salariais e "tornarão a economia mais competitiva" através da "extracção da gordura". Mas a "gordura" real é o sobrecusto da dívida – os juros, amortizações, comissões e penalidades financeiras embutidas dentro do custo de fazer negócio, do custo de vida e do custo do governo.

Quando surgem dificuldades no pagamento de dívida, o caminho da menor resistência é proporcionar mais crédito – a fim de permitir aos devedores que paguem. Isto mantém o sistema solvente aumentando os encargos gerais da dívida – aparentemente um paradoxo. Quando instituições financeiras vêem aproximar-se o ponto em que as dívidas já não podem ser pagas, elas tentam conseguir que "credores sénior" – o BCE e o FMI – emprestem aos governos bastante dinheiro para pagar e, idealmente, transferir dívidas em risco para o governo ("contribuintes"). Isto retira-as da contabilidade dos bancos e de outras grandes instituições financeiras que do contrário teriam de assumir perdas sobre títulos do governo grego, obrigações de bancos irlandeses, etc, assim como estas instituições perdem sobre os seus haveres de hipotecas consideradas lixo.

No fim as dívidas não podem ser pagas.

Para os administradores da alta finança o problema é como adiar incumprimentos por tanto tempo quanto possível – e então salvarem-se, deixando governos ("contribuintes") a segurar o saco, assumindo as obrigações de devedores insolventes (tais como a AIG nos Estados Unidos). Mas para fazer isso em face da oposição popular é necessário suprimir a política democrática. Assim o desinvestimento pelos que eram antes perdedores financeiros exige que a política económica seja retirada das mãos de corpos governamentais eleitos e transferida para as dos planeadores financeiros. É assim que a oligarquia financeira substitui a democracia.

A pagar juros mais alto por risco mais elevado,
enquanto se protegem bancos de perdas

O papel do BCE, FMI e outras agências de supervisão financeira tem sido assegurar que os banqueiros sejam pagos. Quando a passada década de laxismo fiscal e contabilidade fraudulenta veio à luz, banqueiros e especuladores fizeram fortunas elevando a taxa de juro que a Grécia tinha de pagar pelo seu risco acrescido de incumprimento. Para garantir que não perderiam, banqueiros comutaram o risco para a "troika" europeia à qual foram dados poderes para exigir pagamento dos contribuintes gregos.

Bancos que concederam empréstimos ao sector público (a taxas acima do mercado reflectindo o risco), ... estavam a ser salvos a expensas públicas. Exigindo que a Grécia não impusesse um "haircut" a credores, o BCE e a burocracia relacionada da UE pediu para possuidores europeus de títulos um melhor acordo do que os credores tiveram com os títulos Brady que resolveram dívidas latino-americanas e do Terceiro Mundo na década de 1980. Numa entrevista ao Financial Times, Lorenzo Bini Smaghi, membro do conselho executivo do BCE, insistiu em que:

  • - Primeiro, a solução dos títulos Brady foi uma solução para bancos americanos, aos quais basicamente foi permitido não "mark to market" os títulos reestruturados. Houve tolerância regulamentar, o que foi possível nos anos 1980 mas não seria possível hoje
  • - Segundo, a crise latino-americana foi uma crise de dívida externa. O principal problema na crise grega é a Grécia, seus bancos e o seu próprio sistema financeiro. A América Latina contraiu empréstimos em dólares e as linhas de crédito eram principalmente para com estrangeiros. Aqui, uma grande parte das dívidas é para com gregos. Se a Grécia incumprisse, o sistema bancário grego entraria em colapso. Seria então necessária uma enorme recapitalização – mas de onde viria o dinheiro?
  • - Terceiro, após o incumprimento os países latino-americanos ainda tinham bancos centrais que podiam imprimir dinheiro para pagar salários de funcionários públicos e pensões. Eles fizeram isso e criaram inflação. Assim eles livraram-se [da crise] através da inflação, depreciação e assim por diante. Na Grécia não haveria um banco central que pudesse financiar o governo e ele teria de encerrar parcialmente algumas das suas operações, como o sistema de saúde.

Bini Smaghi ameaçou que a Europa destruiria a economia grega se esta tentasse reduzir (scale back)as suas dívidas ou mesmo estender para maturidades a fim de reflectir a sua capacidade de pagar. A opção da Grécia era entre isso ou a anarquia. A reestruturação não beneficiaria "o povo grego. Ela implicaria um grande desastre económico, social e mesmo humanitário, dentro da Europa. A disciplina implica que as coisas caminhem suavemente, mas se você liquida o sistema bancário, como podem elas ir suavemente?"

A posição do BCE "é baseada no princípio de que dívidas na área euro têm de ser reembolsadas e os países têm de ser solventes. Isso tem de ser o princípio de uma economia baseada no mercado". (Ralph Atkins, “Transcript: Lorenzo Bini Smaghi,” Financial Times, May 30, 2011. A entrevista ocorreu em 27 de Maio.)

É claro que uma economia orientada para o credor não está realmente baseada no mercado. Os bancos destruíram o mercado através do seu próprio planeamento financeiro central – utilizando alavancagem de dívida para deixar a Grécia com uma opção nua: Ou ela permitiria que responsáveis da UE viessem e trinchassem a sua economia, vendendo os seus principais sítios turísticos e oportunidades de extracção de renda monopolista a credores estrangeiros num gigantesco movimento de arresto nacional, ou ela aguentaria uma situação duríssima e retirar-se-ia da eurozona. Foi este o acordo que Bini Smaghi ofereceu: "se houver privatizações suficientes e assim por diante – então o FMI pode desembolsar e os europeus farão a sua parte. Mas a chave jaz em Atenas, não alhures. O elemento chave para o retorno da Grécia ao mercado é travar discussões acerca de reestruturação".

De uma forma ou de outra a Grécia perderia explicou ele: "incumprimento ou reestruturação não ajudariam a resolver os problemas da economia grega, problemas que podem ser resolvidos só pela adopção das reformas estruturais e medidas de ajustamento fiscal incluídas no programa. Do contrário, isso empurraria a Grécia para uma grande depressão económica e social". Este poder de exigirem ser pagos ou destruírem as poupanças da economia e o sistema monetário é o que os banqueiros centrais chamam de "resgate", ou "restaurar forças de mercado". Banqueiros afirmam que a austeridade ressuscitará o crescimento. Mas aceitar isso como alternativa democrática realista seria auto-imolação.

A menos que a Grécia assinasse esta insensatez, nem o BCE nem o FMI concederiam empréstimos para salvar o seu sistema bancário da insolvência. Em 31 de Maio de 2011, a Europa concordou em proporcionar €86 mil milhões se a Grécia "adiar por enquanto uma reestruturação, suave ou dura, do enorme fardo que é a dívida grega". A pretensão constituía a "esperança de que num par de anos a Grécia estará em melhor posição para reembolsar plenamente suas dívidas". A antecipação do falso resgate levou o euro a recuperar-se em relação a divisas estrangeiras e as acções europeias saltaram 2 por cento. Os rendimentos de títulos gregos a 10 anos caíram "apenas" um nível aflitivo de 15,7 por cento, um ponto percentual abaixo da altura da semana anterior de 16,8 por cento quando um responsável grego fez o anúncio ameaçador de que "Reestruturação está fora de discussão. Por agora trata-se só de crescimento, crescimento, crescimento".

Como pode austeridade
consistir em crescimento?

Esta ideia nunca funcionou, mas a pretensão está em andamento. A UE proporcionaria bastante dinheiro para o governo grego salvar possuidores de títulos de terem de sofrer perdas. O sector financeiro suporta pesadas despesas de contribuintes enquanto o fardo não cair sobre si próprio ou seus principais clientes no sector imobiliário ou a infraestrutura de monopólios a ser privatizada.

O compromisso empréstimo-por-privatização foi chamado de "ajuda à Grécia" ao invés de ajuda a possuidores de títulos alemães, franceses e outros. Mas os investidores financeiros sabiam melhor. "Desde que começou a crise, 60 mil milhões de euros em depósitos foram retirados de bancos gregos, cerca de um quarto do produto do país" (Atkins, FT ). Estas retiradas, que foram ganhando ímpeto, foram da dimensão precisa do empréstimo que estava a ser oferecido!

Enquanto isso, a transferência de 60 mil milhões de euros para fora dos balanços dos bancos e para dentro do sector privado ameaçava elevar o rácio da dívida pública em relação ao PIB em mais de 150 por cento. Houve a conversa de que outros 100 mil milhões de euros seriam necessários para "socializar as perdas" que de outra forma seriam sofridas por banqueiros alemães, franceses e outros da Europa que tinham os olhos fitos num ganho inesperado se títulos gregos fortemente descontados fossem tornados livres de risco pelo retalhamento da Grécia de forma muito semelhante àquela que o Tratado de Versalhes fez à Alemanha após a I Guerra Mundial.

A população grega certamente viu
que o mundo estava em guerra financeira...

Multidões cada vez maiores reuniram-se a cada dia para protestar na Praça Sintagma, em frente ao Parlamento, tal como multidões de islandeses haviam feito antes sob ameaças semelhantes dos seus sociais-democratas de liquidarem a nação junto a credores europeus. E assim como o primeiro-ministro da Islândia, Sigurdardottir, resistiu arrogantemente contra a opinião pública, da mesma forma comportou-se o primeiro-ministro socialista grego, George Papandreu. Isto levou a Comissária das Pescas da UE, Maria Damanaki, "a 'falar abertamente' acerca do dilema enfrentado pelo seu país", advertindo: "O cenário da saída da Grécia do euro está agora em cima da mesa, assim como os caminhos para fazer isso. Quer concordemos com os nossos credores sobre um programa de árduos sacrifícios e resultados ... ou quer retornemos ao dracma. Tudo o mais é de importância secundária". E o antigo ministro das Finanças holandês Wiem Vermeend escreveu em De Telegraaf que "A Grécia deveria deixar o euro", uma vez que nunca será capaz de reembolsar a sua dívida".

Tal como na Islândia, as medidas de austeridade gregas deveriam ser postas em referendo nacional – com pesquisas relatando que cerca de 85 por cento dos gregos rejeitam o salvamento bancário com plano de austeridade. O seu governo está a pagar pelo crédito o dobro dos alemães, apesar de aparentemente não haver risco cambial externo (utilizando o euro). O resultado pode ser impulsionar a Grécia para fora da eurozona, não só ao forçá-la ao incumprimento (a receita não está lá para pagar) como pela Terceira Lei do Movimento Político de Newton: Toda acção cria uma acção igual e oposta. A tentativa do BCE de fazer com que o trabalho grego ("contribuintes") paguem possuidores estrangeiros de títulos está a levar à pressão pelo repúdio total e ao movimento interno "Não pagarei". O movimento trabalhista grego sempre foi forte e a crise da dívida está a radicalizá-lo ainda mais.

O objectivo dos bancos comerciais é substituir governos na criação de moeda, tornando a economia inteiramente dependente deles, com a tomada de empréstimos pelo sector público criando um enorme "mercado" livre de risco para empréstimos geradores de juros. Foi para ultrapassar esta situação que foi criado o Banco da Inglaterra em 1694 – para libertar o país da dependência do crédito italiano e holandês. De modo análogo a Reserva Federal dos EUA, com todas as suas limitações, foi fundada para permitir ao governo criar a sua própria moeda. Mas os bancos europeus manietaram os seus governos, substituindo a democracia parlamentar pela ditadura do BCE, o qual está impedido constitucionalmente de criar crédito para governos – até que bancos da Alemanha e da França considerem do seu próprio interesse fazer isso. Tal como o professor Bill Black, da Universidade do Missouri-Kansas City resume a situação:

"Um país que abandona a sua divisa soberana aderindo ao euro abandona os três principais meios efectivos de responder a uma recessão. Ele não pode desvalorizar a sua divisa para tornar as suas exportações mais competitivas. Ele não pode empreender uma política monetária expansionista. Ele não tem qualquer política monetária e os países da periferia da UE não têm influência significativa sobre as políticas monetárias do BCE. Ele não pode montar uma política fiscal adequadamente expansionista devido às restrições do pacto de crescimento e estabilidade da UE. O pacto é um duplo paradoxo – ao impedir políticas fiscais contra-cíclicas prejudica o crescimento e a estabilidade por toda a Eurozona".

As políticas financeiras agora são dominadas pelo impulso para substituir incumprimentos de dívida por contínuos excedentes fiscais para pagar banqueiros e possuidores de títulos. O sistema financeiro quer ser pago. Mas matematicamente isto é impossível, devido à "mágica do juro composto" ultrapassar a capacidade da economia para pagar – a menos que bancos centrais inundem mercados de activos com nova bolha de crédito, como tem feito a política estado-unidense desde 2008. Quando devedores não podem pagar e quando os bancos por sua vez não podem os seus depositantes e outras contrapartes, o sistema financeiro vira-se para o governo a fim de extrair a receita dos "contribuintes" (não do próprio sector financeiro). A política salva bancos insolventes através do afundamento de economias internas na deflação da dívida, fazendo os contribuintes arcarem com o custo dos bancos em más condições.

Estas obrigações financeiras são virtualmente uma exigência de tributos. E desde 2010 elas têm sido aplicadas aos países PIIGS. O problema é que receita utilizada para pagar credores não fica disponível para gastar dentro da economia. De modo que o investimento e o emprego se contraem e os incumprimentos propagam-se. Alguma coisa deve ceder, politicamente assim como economicamente, quando a sociedade é recuada ao "problema de Copérnico".

Será que a economia "real" da produção e do consumo gira em torno das finanças ou, em alternativa, as exigências financeiras de juros devorarão o excedente económico e começarão a comer a própria economia?

Deterministas tecnológicos acreditam que a tecnologia conduz tudo. Se assim fosse, o aumento da produtividade teria feito toda a gente rica na Europa e nos Estados Unidos, bastante rica para não ficar em dívida. Mas há um brutal questionamento da Escola de Chicago insistindo em que o sofrimento desnecessário de hoje é perfeitamente natural e mesmo necessário para resgatar economias através do salvamento dos seus bancos e do encargo da dívida – como se tudo isto fosse o núcleo económico, não o envoltório em torno do núcleo.

Enquanto isso, economias estão a cair mais profundamente na dívida, apesar das medidas de aumento da produtividade. O enigma aparente foi explicado muitas vezes, mas é tão contra-intuitivo que produz uma parede de dissonância cognitiva. A visão natural é pensar que o mundo não deveria estar neste caminho, deixar a criação de crédito sobrecarregar economias com dívidas sem financiar os meios de pagá-las. Mas este desequilíbrio é a dinâmica chave que define se as economias crescerão ou contrair-se-ão.

John Kenneth Galbraith explicou que a banca e a criação de crédito é um princípio tão simples que a mente o rejeita – porque é alguma coisa em troca de nada, o proverbial almoço gratuito que tem origem no princípio de bancos criarem depósitos ao fazerem empréstimos. Assim como a natureza odeia o vácuo, do mesmo modo a maior parte das pessoas odeia a ideia de que existe uma coisa tal como um almoço gratuito. Mas os adeptos financeiros do almoço gratuito assumiram o comando do sistema político.

Eles podem manter-se no seu privilégio e impedir uma amortização da dívida apenas na medida em que possam impedir a generalização de uma objecção moral à ideia de que a economia é só para salvar os direitos dos credores de serem reduzidos à capacidade de pagar da economia – pela afirmação de que o travão financeiro é realmente a chave para o crescimento, não um pagamento de livre transferência.

O iminente referendo grego coloca esta questão assim como o fez no princípio desta Primavera o da Islândia. Como comentou Yves Smith recentemente quanto ao "jogo da galinha" de se o governo da Grécia aceitaria ou rejeitaria os seus árduos termos.

"Isto é ao que se assemelha a escravidão da dívida a um nível nacional. ... A Grécia parece estar no seu caminho para ficar sob a bota de banqueiros assim como antigamente pequenos agricultores livres sulistas foram transformados em "colhedores de dívidas" após a Guerra Civil dos EUA. Políticas deflacionárias deixaram muita gente com pagamentos de hipotecas cujo serviço era cada vez mais difícil. Muitos caem na servidão do 'empenhamento da plantação'. Agricultores estavam famélicos por dinheiro e empenharam suas plantações a mercadores os quais então actuaram de um modo parental abusivo, sendo dadas listas de bens necessários para operar a terra e manter a família do agricultor e repartindo-os como consideravam adequado. Os mercadores não só aplicavam juros aos empréstimos como também vendiam os bens aos agricultores com margens de 30 por cento ou maiores sobre os preços à vista. O sistema era operado, intencionalmente, de modo a que a colheita do agricultor nunca o livrasse das suas dívidas. (o mercador como comprador contratado podia pagar o que quisesse pela colheita; o agricultor não podia comercializá-la junto a terceiros). Esta servidão da dívida finalmente levou à rebelião na forma do movimento populista. (Yves Smith, “Will Greeks Defy Rape and Pillage By Barbarians Bankers? An E-Mail from Athens,” Naked Capitalism, May 30, 2011.)

Poder-se-ia esperar um movimento político semelhante nos dias de hoje. E tal como no fim do século XIX, serão mobilizados economistas académicos para rejeitá-lo. Subsidiados pelo sector financeiro, a ortodoxia económica de hoje considera natural canalizar ganhos de produtividade para o sector das finanças, seguros e imobiliário (finance, insurance and real estate. FIRE) e os monopólios ao invés de elevar salários e padrões de vida.

Obrigar os governos pagarem
a credores quando os bancos encalham

Está em debate não só se dívidas à banca deveriam ser pagas pela transferência para o balanço público a expensas do contribuinte, mas também se elas podem razoavelmente ser pagas. Se elas não puderem ser, então tentar pagá-las contrairá as economias ainda mais, tornando-as assim menos viáveis. Muitos países já ultrapassaram este limite financeiro. O que está agora em causa é um passo político – se há um limite de quanto mais juros credores podem pressionar populações nacionais à dependência da dívida.

Gerações futuras podem recordar a nossa época como uma grande Experiencia Social de quão longe o ponto pode ser diferido no qual o governo – ou parlamentos – traçarão uma linha contra a imposição ao passivo público de dívidas para além de qualquer capacidade razoável de pagar sem cortar drasticamente despesas públicas com educação, cuidados de saúde e outros serviços básicos?

Será que um governo – ou economia – será declarado solvente enquanto tiver bastante terra e edifícios, estradas, ferrovias, sistemas telefónicos e outras infraestruturas para liquidar pagamentos de juros sobre dívidas que se acumulam exponencialmente?

Ou deveríamos nós pensar da solvência como existente sob proporções existentes nas nossas economias mistas público/privadas?

Se populações puderem ser convencidas da última definição – como o foram aquelas da antiga União Soviética e como o BCE, UE e FMI estão agora a exigir – então o sector financeiro prosseguirá com buyouts e arrestos até possuir todos os activos do mundo, todos os activos até agora públicos, activos corporativos e aqueles de indivíduos e sociedades.

É acerca disto a guerra financeira de hoje. Em causa está o relacionamento entre o sector financeiro e a economia "real".

Da perspectiva da economia "real", o papel adequado do crédito – isto é, da dívida – é financiar investimento em capital produtivo e crescimento económico. Afinal de contas, é a partir do excedente económico que o juro tem de ser pago.

Isto exige um sistema fiscal e um sistema regulamentar das finanças para maximizar o crescimento. Mas é precisamente a política fiscal que o sector financeiro de hoje está a combater. Ele exige dedutibilidade fiscal para o juro, encorajando o financiamento por dívida ao invés de acções.

Os bancos e não têm mostrado grande interesse pelo bem-estar da economia em sentido amplo. É mais fácil e mais rápido fazer dinheiro sendo extractivo e predatório.

A fraude e o crime compensam, se você puder desactivar a polícia e agências regulamentares. Assim isso tornou-se a agenda financeiro, ansiosamente endossada por porta-vozes académicos e ideólogos dos media os quais aplaudem administradores da banca e correctores de hipotecas subprime, atacantes (raiders) corporativos e seus accionistas, e a nova ninhada de privatizadores, utilizando a medida unidimensional de quanta receita pode ser extraída e capitalizada em serviço da dívida. Desta perspectiva neoliberal, a riqueza da economia é medida pela magnitude das obrigações de dívida – hipotecas, títulos e empréstimos bancários empacotados – que capitalizam rendimento e mesmo esperançosamente ganhos de capital à taxa de juro existente.

A Islândia tardiamente decidiu que era errado entregar a sua banca a uns poucos oligarcas internos sem qualquer supervisão ou regulamentação real sobre as suas transacções. Do ângulo privilegiado da teoria económica, não era loucura imaginar que o gracejo de Adam Smith acerca de não confiar na benemerência do talhante, cervejeiro ou padeiro pelos seus produtos, mas sim no seu auto-interesse, será aplicável a banqueiros? O seu "produto" não é um bem de consumo tangível, mas dívida portadora de juros. Estas dívidas são um direito sobre a produção, receita e riqueza, elas não constituem riqueza real.

Isto é o que os neoliberais pró-financeiros deixam de entender. Para eles, criação de dívida é "criação de riqueza" (eufemismo favorito de Alan Greenspan) quando o crédito – isto é, dívida – aumenta preços de propriedade, acções e títulos e portanto fortalece balanços financeiros. A "teoria do equilíbrio" que está subjacente à ortodoxia académica trata preços de activos (riqueza financiarizada) como reflectindo uma capitalização do rendimento esperado. Mas na Bolha Económica de hoje, preços de activos reflectem seja o que for que banqueiros emprestem. Ao invés de serem baseados no cálculo racional, seus empréstimos são baseados no que banqueiros de investimento são capazes de empacotar e vender a instituições financeiras frequentemente crédulas. Esta lógica leva a tentativas de pagar pensões a partir de um processo de "criação de riqueza" que dirige economias para a dívida.

Não é difícil ilustrar isso estatisticamente. O montante de dívida que uma economia pode pagar é limitado pela dimensão do seu excedente, definido como lucros corporativos e rendimento pessoal para o sector privado e a receita fiscal líquida paga ao sector público. Mas nem a teoria financeira de hoje nem a prática global reconhecem um constrangimento da capacidade de pagar. Assim tem sido permitido ao serviço da dívida comer a formação de capital e reduzir padrões de vida – e agora, exigir privatizações a preços de saldo.

Como alternativa a tais exigências financeiras, a Islândia proporcionou um modelo do que a Grécia pode fazer. Respondendo a exigências britânicas e holandesas de que o seu governo garantisse o pagamento do salvamento do Icesave, o Althing [Parlamento] recentemente afirmou o princípio da dívida soberana:

"As pré-condições para a extensão de garantia do governo de acordo com este Acto são:
  1. Que ... o cálculo será feito considerando a dificuldade e circunstâncias sem precedentes com a qual a Islândia está confrontada e a necessidade de decidir sobre medidas que permitam reconstruir seu sistema financeiro e económico.Isto implica, dentre outras coisas, que as partes contratantes concordarão num pedido fundamentado e objectivo da Islândia para uma revisão do acordo em conformidade com as suas disposições.
  2. Que a posição da Islândia como estado soberanos exclui processos legais contra seus activos os quais são necessários para desempenhar de uma maneira aceitável suas funções como estado soberano"

Ao invés de impor a espécie de programas de austeridade que devastaram países do Terceiro Mundo desde a década de 1970 à de 1990 e levá-los a evitar o FMI como uma praga, o Althing está a mudar as regras do sistema financeiro. Ele está a subordinar o reembolso da Islândia à Grã-Bretanha e Holanda à capacidade da economia islandesa de pagar:

"Ao avaliar as pré-condições para uma revisão dos acordos, também serão tomadas em conta a posição da economia nacional e das finanças do governo em qualquer dado momento e as perspectivas a este respeito, com especial atenção sendo dadas a questões de câmbio estrangeiro, desenvolvimentos da taxa de câmbio e a balança de transacções correntes, crescimento económico e alterações no produto interno bruto bem como desenvolvimentos quanto à dimensão da população e da participação no mercado de trabalho".

Esta é a proposta do Althing para regularizar reclamações sobre o banco Icesave que a Grã-Bretanha e a Holanda rejeitam tão apaixonadmente como "impensável". Assim, a Islândia disse: "Não, leve-nos ao tribunal". E é neste ponto que as coisas estão agora.

A Grécia não está em tribunal. Mas fala-se de uma "lei superior", tal como foi discutidos nos Estados Unidos antes da Guerra Civil quanto à escravidão. Em causa está hoje o seu análogo financeiro, a servidão da dívida.

Será suficiente mudar
o ambiente financeiro do mundo?

Pela primeira vez desde a década de 1920 (tanto quanto sei), a Islândia fez do princípio capacidade-para-pagar a base legal explícita para o serviço internacional de dívida. O montante a ser pago deve ser limitado a uma proporção específica do crescimento do seu PIB (com base na admitidamente ténue suposição de que este possa ser convertido em rendimentos de exportação). Após a recuperação da Islância, a Tesouro ofereceu como garantia de pagamento à Grã-Bretanha no período 2017-2023 até 4 por cento do crescimento do PIB após 2008, mais outros 2 por cento para os holandeses. Se não houver crescimento no PIB, não haverá serviço da dívida. Isto significa que se credores tomassem acções punitivas cujo efeito seja estrangular a economia da Islândia, eles não obteriam pagamento.

Não é de admirar que a burocracia da UE reagisse com tamanha raiva. Era quase uma rebelião de escravos. Retornando à Terceiro Lei do Movimento, de Newton, aplicável à política e à ciência económica, era bastante natural para a Islândia, como para a maior parte dos países por toda a área do desastre neoliberalizado, ser a primeira economia a recuar.

Nos últimos dois anos viu o seu status afundar dos mais altos padrões de vida do Ocidente (financiados pela dívida, como se verificou) para o mais profundamente endividado. Em tais circunstâncias é natural para uma população e seus representantes eleitos experimentarem um choque cultural – neste caso, uma consciencialização da ideologia destrutiva dos eufemismos do "mercado livre" neoliberal que levaram à privatização dos bancos do país e a decorrente bacanal de dívida.

Os gregos reunidos na Praça Sintagma não parecem precisar de qualquer choque cultural para rejeitarem a genuflexão do seu governo socialista a banqueiros europeus. Aparentemente podem seguir a Islândia e levar o pêndulo ideológico outra vez rumo à consciência clássica de que na prática esta retórica revela-se ser uma teoria económica lixo favorável a bancos e credores globais. Dívida portadora de juros é o "produto" que os bancos vendem, afinal de contas. O que parecia à primeira vista ser "criação de riqueza" era mais precisamente criação de dívida, na qual os bancos não assumiam qualquer responsabilidade pela capacidade de pagar. O crash resultante levou o sector financeiro a acreditar subitamente que amava o controle centralizado do governo – na medida dos pedidos ao sector público por salvamentos que reduzissem economias endividadas a uma geração de servidão fiscal para pagar a dívida com a resultante contracção económica.

Tanto quanto sei, este acordo é o primeiro desde o Plano Young para reparações devidas pela Alemanha de subordinar obrigações internacionais de dívida ao princípio da capacidade de pagar. A proposta do Althing explicita isso em termos claros, como uma alternativa à ideia neoliberal de que economias devem pagar quer queiram quer não (como diria Keynes), sacrificando seu futuro e conduzindo a sua população a emigrar numa vã tentativa de pagar dívidas que, no fim, não podem ser pagas mas simplesmente deixam economias devedoras irremediavelmente dependentes dos seus credores. No fim, países democráticos não estão desejosos de entregar a autoridade do planeamento político a uma oligarquia financeira emergente.

Não há dúvida de que países pós-soviéticos estão a observar, bem como os latino-americanos, africanos e outros devedores soberanos cujo crescimento tem sido atrofiado pelos programas de austeridade predatórios impostos pelo FMI, Banco Mundial e da UE nas últimas décadas. Todos nós deveríamos desejar que a era pós Bretton Woods esteja ultrapassada. Mas não estará até que a população grega siga a da Islândia dizendo não – e a da Irlanda finalmente acorde.

* Professor e pesquisador de Economia na Universidade de Missouri, Kansas City (UMKC);  pesquisador associado do Levy Economics Institute of Bard College; analista e consultor de Wall Street; presidente do Institute for the Study of Long-term Economic Trends (ISLET), e membro fundador da International Scholars Conference on Ancient Near Eastern Economies (ISCANEE)

quinta-feira, 23 de junho de 2011

COM A DEVIDA VÉNIA O Velho Continente visto da Venezuela

"Europa debe hacerse reinvención de la democracia en sustitución de esta casta impermeable que parece rodearla y que la hace caer en la desesperación impotente y en la corrupción. La democracia actual es la del siglo XX sin que Europa se de cuenta de lo que si se han dado unos pocos: la necesaria intervención de las comunidades en las instituciones supranacionales."
La enfermedad de Europa

No parece existir una política anti-crisis de ninguno de los dos lados que conlleve a los objetivos comunes y a la reaparición de una verdadera solidaridad

Teódulo López Meléndez *

No han sabido las élites construir una verdadera Europa sino una especie de patchwork institucional basado sobre equilibrios que en nada contribuye a la mejoría real de la vida. Hay, pues, una crisis de confianza. Y la vertiente económica que afecta al empleo y las prestaciones sociales.

En pocas palabras, Europa se convirtió en el segundo escenario de la crisis financiera global. The Times sentenció: “El sistema bancario es insolvente, el desempleo se acelera, los ingresos por impuestos caen, los mercados están en un estado de choque, la construcción se derrumba, los déficits aumentan vertiginosamente y la confianza de los consumidores sufre una masiva contracción en todo el sistema que podría salirse de control”.

La derecha aparece impotente y achantada generando extremismos que por momentos hacen recordar los grandes males del siglo XX. La izquierda ha perdido la brújula y se mueve enloquecida y sin ideas, nutriéndose del pasado o dando muestras de su incapacidad de sustituirlo.

La izquierda no logra refundarse sobre nuevo pensamiento, se manifiesta impotente para ofrecer respuestas. La derecha, ante su confusión encerrada en el traje del nacionalismo, sólo encuentra acción en planes de seguridad y de reactivación económica. No parece existir una política anti-crisis de ninguno de los dos lados que conlleve a los objetivos comunes y a la reaparición de una verdadera solidaridad.

Pero es la crisis moral la más grave. Algunos la denominan de moral civilizadora. La historia parece ha dejado de ser competencia por el poder o competencia por la riqueza. Europa era el centro de la cultura mundial y ya no lo es. Quedó de manifiesto al final de la Guerra Fría. Una crisis de cultura necesariamente lleva a una crisis política. El siglo XXI se está convirtiendo para Europa en el siglo de la nada. El nihilismo que he puesto de relieve en otros textos conlleva a un profundo cansancio y a un relativismo moral.

Hay un malestar intelectual que hace a los europeos incapaces de definir el resultado de la presente transición. El proceso de pensamiento parece paralizado en un proceso cultural de choque psicológico. El desgaste político se acentúa como normal consecuencia. La relación del individuo con la sociedad ha alcanzado altos grados de empobrecimiento.

Europa puede estallar como proyecto político o recomponerse. Como he insistido el problema radica claramente en la política. La pretensión que asoman algunos líderes de estatismo como solución contradice claramente el deslizarse del Estado-nación lo que implica la necesidad de un avance hacia el fortalecimiento de un poder público comunitario. Europa debe hacerse reinvención de la democracia en sustitución de esta casta impermeable que parece rodearla y que la hace caer en la desesperación impotente y en la corrupción. La democracia actual es la del siglo XX sin que Europa se de cuenta de lo que si se han dado unos pocos: la necesaria intervención de las comunidades en las instituciones supranacionales.

Si bien la situación económica provoca ansiedad e interrogaciones sobre el futuro es el marco general donde debemos buscar la irritación, la desesperación juvenil y la frustración. Cada ser humano vive su propia crisis subjetiva y la desadaptación se convierte en miedo y posteriormente en reacción.

Crisis económica, crisis cultural, crisis psicológica, crisis social, hasta quizás ser crisis humana. Aparte de lo puntual como consecuencia del quiebre económico, esto es, reducción de beneficios sociales y despido de empleados públicos – lo que refleja una reducción del Estado en medio de la paradoja de renacimiento del estatismo- la otra causa son las migraciones y la xenofobia. Y la otra cara de Jano: pretendieron construir a Europa sin la participación activa de sus ciudadanos. Y lo dijeron explícitamente al eliminar del Tratado de Lisboa la referencia a democracia participativa para quedarse en un concepto desmoronado de democracia representativa. Las quejas por las derrotas de una Constitución quizás deban ser reemplazadas con una autocrítica por el empujón de rechazo dado a los ciudadanos europeos.

Esta es la Europa de la crisis con la consecuencial pérdida de confianza en una clase política burocratizada con claras manifestaciones de ineptitud.

* Escritor, político e diplomata venezuelano

terça-feira, 14 de junho de 2011

CARTA DA CANADÁ Camões, eis a questão

"O ensino e expansão da língua portuguesa, bem como a difusão da nossa vasta e rica cultura, têm sofrido tratos de polé, não apenas por legislação deficiente, mas sobretudo porque os agentes de ensino e cultura têm vindo a perder qualidade, piorando as coisas quando há diplomatas que sofrem de preparação inadequada e da mediocridade reinante."
Pátria grande e Pátria chica

Tudo quanto representar Portugal no estrangeiro deve ter estatura, dignidade e recato.
Só assim se alcança prestígio além fronteiras

Fernnanda Leitão *

Quem tem estudos e mundo sabe que vários países têm tido o cuidado de abrir centros culturais em vários continentes, com o objectivo de servirem de apoio à rede escolar da sua diáspora e de divulgarem a sua língua e cultura junto de estrangeiros. A Espanha tem o seu Instituto Cervantes, a Alemanha o seu Instituto Goethe, o Reino Unido o seu Instituto Britânico, a Itália o seu Instituto Italiano de Cultura, A França a sua Aliance Française, e por aí fora.

Em geral, esses centros culturais têm instalações próprias e condignas, contando com apreciáveis bibliotecas, espaços para teatro, concertos e palestras, galeria de arte e uma zona de convívio.

São sustentados pelo estado a que pertencem e têm a preocupação de projectar no estrangeiro uma imagem impecável do país. O que se compreende por se tratar de países que têm respeito por si próprios. Quase sempre são frequentados e vsitados por grande número de pessoas para quem os bens da cultura são importantes e, pela ordem natural das coisas, são o ponto de encontro dos que investem no saber e mesmo dos que, embora não propagandeando a chamada diplomacia económica, usam estas portas abertas para o mundo dos negócios de grande envergadura. Na verdade, esses centros tornam-se cosmoplitas e uma referência dos países que representam.

Portugal teve o seu Instituto de Alta Cultura, que levou a muitos países, com elevação, o seu património de conhecimento, mas deixou de o ter depois de 1974. Não seria perfeito e nem sequer acessível a largas camadas, mas a verdade é que não houve interesse em aproveitar a sua estrutura e adaptá-lo aos novos tempos. Optou-se pelo bota-abaixo que é sempre sinal de cegueira voluntária.

O ensino e expansão da língua portuguesa, bem como a difusão da nossa vasta e rica cultura, têm sofrido tratos de polé, não apenas por legislação deficiente, mas sobretudo porque os agentes de ensino e cultura têm vindo a perder qualidade, piorando as coisas quando há diplomatas que sofrem de preparação inadequada e da mediocridade reinante.

Lembro a propósito que um antigo secretário de estado das Comunidades num dos governos PSD, Cesário de seu nome, resolveu, numa das suas vindas ao Canadá, oferecer à sucapa uns livros e uma autorização para abrir uma escola a um clube da sua terra.

O resultado não foi brilhante: para irem aos sanitários ou simplesmente para entrarem e saírem do cubículo a que pomposamente se resolveu chamar sala de aulas, as crianças tinham de atravessar o fumo intenso dos cigarros e a barreira dos palavrões que envolviam os jogadores de cartas.

Aceitar sem uma crítica estas opções bárbaras, é negar a Portugal o estatuto de Pátria grande e obrigá-lo à prática de Pátria chica. Porque tudo quanto representar Portugal no estrangeiro deve ter estatura, dignidade e recato. Só assim se alcança prestígio além fronteiras.

É do conhecimento geral que o Instituto Camões levou um grande corte orçamental e tudo leva a crer que levará mais nos tempos a vir, de modo que dali não poderão vir dinheiros bastantes para sustentar centros de cultura. Pois se já não tem dinheiro para pagar aos seus funcionários, espalhados pelo mundo, a tempo e horas... Não sabemos se os vários centros culturais que abriram em anos passados estão instalados com dignidade ou se, por estreiteza de vistas, estão instalados “à Cesário” e a viverem de dinheiros deste ou daquele interessado em galarim. Se assim for, é melhor fechá-los. Ou até mesmo acabar com o Instituto Camões autónomo e integrá-lo num Ministério da Cultura forte e prestigiado. E deixar em boas mãos o ensino da língua portuguesa, isto é, nas mãos dos professores treinados para o efeito, com provas dadas de competência, honestidade e fidelidade à Pátria grande.

* Jornalista radicada em Toronto
 Ilustração: "Olga" de Paula Rego

domingo, 12 de junho de 2011

MEMÓRIA OPORTUNA O que é o ritmo...


"
Pelas características indicadas como as do provinciano, imediatamente se verifica que a mentalidade dele tem uma semelhança perfeita com a da criança. A reação do provinciano, às suas artificialidades, que são as novidades sociais, é igual à da criança às suas artificialidades, que são os brinquedos. Ambos as amam espontaneamente, e porque são artificiais. "
O Provincianismo Português (II)

A tragédia mental de Portugal presente é que, como veremos, o nosso escol é estruturalmente provinciano

Fernando Pessoa *

Se fosse preciso usar de uma só palavra para com ela definir o estado presente da mentalidade portuguesa, a palavra seria "provincianismo". Como todas as definições simples esta, que é muito simples, precisa, depois de feita, de uma explicação complexa. Darei essa explicação em dois tempos: direi, primeiro, a que se aplica, isto é, o que deveras se entende por mentalidade de qualquer país, e portanto de Portugal; direi, depois, em que modo se aplica a essa mentalidade.

Por mentalidade de qualquer país entende-se, sem dúvida, a mentalidade das três camadas, organicamente distintas, que constituem a sua vida mental — a camada baixa, a que é uso chamar povo; a camada média, a que não é uso chamar nada, excepto, neste caso por engano, burguesia; e a camada alta, que vulgarmente se designa por escol, ou, traduzindo para estrangeiro, para melhor compreensão, por elite.

O que caracteriza a primeira camada mental é, aqui e em toda a parte, a incapacidade de reflectir. O povo, saiba ou não saiba ler, é incapaz de criticar o que lê ou lhe dizem. As suas ideias não são actos críticos, mas actos de fé ou de descrença, o que não implica, aliás, que sejam sempre erradas. Por natureza, forma o povo um bloco, onde não há mentalmente indivíduos; e o pensamento é individual.

O que caracteriza a segunda camada que não é a burguesia, é a capacidade de reflectir, porém sem ideias próprias; de criticar, porém com ideias de outrem. Na classe média mental, o indivíduo, que mentalmente já existe, sabe já escolher - por ideias e não por instinto - entre duas ideias ou doutrinas que lhe apresentem; não sabe, porém, contrapor a ambas uma terceira, que seja própria. Quando, aqui e ali, neste ou naquele, fica uma opinião média entre duas doutrinas, isso não representa um cuidado crítico, mas uma hesitação mental.


O que caracteriza a terceira camada, o escol, é como é de ver por contraste com as outras duas, a capacidade de criticar com ideias próprias. Importa, porém, notar que essas ideias próprias podem não ser fundamentais. O indivíduo do escol pode, por exemplo, aceitar inteiramente uma doutrina alheia; aceita-a, porém, criticamente, e, quando a defende, defende-a com argumentos seus - os que o levaram a aceitá-la - e não, como fará o mental da classe média, com os argumentos originais dos criadores ou expositores dessas doutrinas.


Esta divisão em camadas mentais, embora coincida em parte com a divisão em camadas sociais - económicas ou outras, - não se ajusta exatamente a essa. Muita gente das aristocracias de história e de dinheiro pertence mentalmente ao povo. Bastantes operários, sobretudo das cidades, pertencem à classe média mental. Um homem de génio ou de talento, ainda que nascido de camponeses, pertence de nascença ao escol.

Quando, portanto, digo que a palavra "provincianismo" define, sem outra que a condicione, o estado mental presente do povo português, digo que essa palavra "provincianismo", que mais adiante definirei, define a mentalidade do povo português em todas as três camadas que a compõem. Como, porém, a primeira e a segunda camadas mentais não podem por natureza ser superiores ao escol, basta que eu prove o provincianismo do nosso escol presente, para que fique provado o provincianismo mental da generalidade da nação.

Os homens, desde que entre eles se levantou a ilusão ou realidade chamada civilização, passaram a viver, em relação a ela, de uma de três maneiras, que definirei por símbolos, dizendo que vivem ou como os campônios, ou como provincianos, ou como citadinos. Não se esqueça que trato de estados mentais e não geográficos, e que portanto o campônio ou o provinciano pode ter vivido sempre em cidade, e o citadino sempre no que lhe é natural desterro.

Ora a civilização consiste simplesmente na substituição do artificial ao natural no uso e correnteza da vida. Tudo quanto constitui a civilização, por mais natural que nos hoje pareça, são artifícios: o transporte sobre rodas, o discurso disposto em verso escrito, renegam a naturalidade original dos pés e da prosa falada.

A artificialidade, porém, é de dois tipos. Há aquela, acumulada através das eras, e que, tendo-a já encontrado quando nascemos, achamos natural; e há aquela que todos os dias se vai acrescentando à primeira. A esta segunda é uso chamar "progresso" e dizer que é "moderno" o que vem dela. Ora o campônio, o provinciano e o citadino diferençam-se entre si pelas suas diferentes reações a esta segunda artificialidade.

O que chamei campônio sente violentamente a artificialidade do progresso; por isso se sente mal nele e com ele, e intimamente o detesta. Até das conveniências e das comodidades do progresso se serve constrangido, a ponto de, por vezes, e em desproveito próprio, se esquivar a servir-se delas. É o homem dos "bons tempos", entendendo-se por isso os da sua mocidade, se é já idoso, ou os da mocidade dos bisavós, se é simplesmente párvuo.

No pólo oposto, o citadino não sente a artificialidade do progresso. Para ele é como se fosse natural. Serve-se do que é dele, portanto, sem constrangimento nem apreço. Por isso o não ama nem desama: é-lhe indiferente. Viveu sempre (física ou mentalmente) em grandes cidades; viu nascer, mudar e passar (real ou idealmente) as modas e a novidade das invenções; são pois para ele aspectos correntes, e por isso incolores, de uma coisa continuamente já sabida, como as pessoas com quem convivemos, ainda que de dia para dia sejam realmente diversas, são todavia para nós idealmente sempre as mesmas.

Situado mentalmente entre os dois, o provinciano sente, sim, a artificialidade do progresso, mas por isso mesmo o ama. Para o seu espírito desperto, mas incompletamente desperto, o artificial novo, que é o progresso, é atraente como novidade, mas ainda sentido como artificial. E, porque é sentido simultaneamente como artificial é sentido como atraente, e é por artificial que é amado. O amor às grandes cidades, às novas modas, às "últimas novidades", é o característico distintivo do provinciano.

Se de aqui se concluir que a grande maioria da humanidade civilizada é composta de provincianos, ter-se-á concluído bem, porque assim é. Nas nações deveras civilizadas, o escol escapa, porém, em grande parte, e por sua mesma natureza, ao provincianismo. A tragédia mental de Portugal presente é que, como veremos, o nosso escol é estruturalmente provinciano.

Não se estabeleça, pois seria erro, analogia, por justa posição, entre as duas classificações, que se fizeram, de camadas e tipos mentais. A primeira, de sociologia estática, define estados mentais em si mesmos; a segunda, de sociologia dinâmica, define estados de adaptação mental ao ambiente. Há gente do povo mental que é citadina em suas relações com a civilização. Há gente do escol, e do melhor escol - homens de génio e de talento -, que é campônio nessas relações.

Pelas características indicadas como as do provinciano, imediatamente se verifica que a mentalidade dele tem uma semelhança perfeita com a da criança. A reação do provinciano, às suas artificialidades, que são as novidades sociais, é igual à da criança às suas artificialidades, que são os brinquedos. Ambos as amam espontaneamente, e porque são artificiais.

Ora o que distingue a mentalidade da criança é, na inteligência, o espírito de imitação; na emoção, a vivacidade pobre; na vontade, a impulsividade incoordenada. São estes, portanto, os característicos que iremos achar no provinciano; fruto, na criança, da falta de desenvolvimento civilizacional, e assim ambos efeitos da mesma causa - a falta de desenvolvimento. A criança é, como o provinciano, um espírito desperto, mas incompletamente desperto.

São estes característicos que distinguirão o provinciano do campônio e do citadino. No campônio, semelhante ao animal, a imitação existe, mas à superfície, e não, como na criança e no provinciano, vinda do fundo da alma; a emoção é pobre, porém não é vivaz, pois é concentrada e não dispersa; a vontade, se de facto é impulsiva, tem contudo a coordenação fechada do instinto, que substitui na prática, salvo em matéria complexa, a coordenação aberta da razão. No citadino, semelhante ao homem adulto, não há imitação, mas aproveitamento dos exemplos alheios, e a isso se chama, quando prática, experiência, quando teórico, cultura; a emoção, ainda quando não seja vivaz, é contudo rica, porque complexa, e é complexa por ser complexo quem a terá; a vontade, filha da inteligência e não do impulso, é coordenada, tanto que, ainda quando faleça, falece coordenadamente, em propósitos frustes mas idealmente sistematizados.

Percorramos, olhando sem óculos de qualquer grau ou cor, a paisagem que nos apresentam as produções e improduções do nosso escol. Nelas verificaremos, pormenor a pormenor, aqueles característicos que vimos serem distintivos do provinciano.

Comecemos por não deixar de ver o escol se compõe de duas camadas - os homens de inteligência, que formam a sua maioria, e os homens de génio e de talento, que formam a sua minoria, o escol do escol, por assim dizer. Aos primeiros exigimos espírito crítico; aos segundos exigimos originalidade, que é, em certo modo, um espírito crítico involuntário. Façamos pois incidir a análise que nos propusemos fazer, primeiro sobre o pequeno escol, que são os homens de génio e de talento, depois sobre o grande escol.

Temos, é certo, alguns escritores e artistas que são homens de talento; se algum deles o é de génio, não sabemos, nem para o caso importa. Nesses, evidentemente, não se pode revelar em absoluto o espírito de imitação, pois isso importaria a ausência de originalidade, e esta a ausência de talento. Esses nossos escritores e artistas são, porém, originais uma só vez, que é a inevitável. Depois disso, não evoluem, não crescem; fixado esse primeiro momento, vivem parasitas de si mesmos, plagiando-se indefinidamente. A tal ponto isto é assim, que não há, por exemplo, poeta nosso presente - dos célebres, pelo menos - que não fique completamente lido quando incompletamente lido, em que a parte não seja igual ao todo. E se em um ou outro se nota, em certa altura, o que parece ser uma modificação da sua "maneira", a análise revelará que a modificação foi regressiva: o poeta ou perdeu a originalidade e assim ficou diferente pelo processo simples de ficar inferior, ou decidiu começar a imitar outros por impotência de progredir de dentro, ou resolveu, por cansaço, atrelar a carroça do seu estro ao burro de uma doutrina externa, como o catolicismo ou o internacionalismo. Descrevo abstratamente, mas os casos que descrevo são concretos; não preciso de explicar, porque não junto a cada exemplo o nome do indivíduo que mo fornece.

O mesmo provincianismo se nota na esfera da emoção. A pobreza, a monotonia da emoção nos nossos homens de talento literário e artístico, salta ao coração e confrange a inteligência. Emoção viva, sim, como aliás era de esperar, mas sempre a mesma, sempre simples, sempre simples emoção, sem auxílio crítico da inteligência ou da cultura. A ironia emotiva, a sutileza passional, a contradição no sentimento - não as encontrareis em nenhum dos nossos poetas emotivos, e são quase todos emotivos. Escrevem, em matéria do que sentem, como escreveria o pai Adão, se tivesse dado à humanidade, além do mau exemplo já sabido, o, ainda pior, de escrever.

A demonstração fica completa quando conduzimos a análise à região da vontade. Os nossos escritores e artistas são incapazes de meditar uma obra antes de a fazer, desconhecem o que seja a coordenação, pela vontade intelectual, dos elementos fornecidos pelas emoção, não sabem o que é a disposição das matérias, ignoram que um poema, por exemplo, não é mais que uma carne de emoção cobrindo um esqueleto de raciocínio. Nenhuma capacidade de atenção e concentração, nenhuma potência de esforço meditado, nenhuma faculdade de inibição. Escrevem ou artistam ao sabor da, chamada "inspiração", que não é mais que um impulso complexo do subconsciente que cumpre sempre submeter, por uma aplicação centrípeta da vontade, à transmutação alquímica da consciência. Produzem como Deus é servido, e Deus fica mal servido. Não sei de poeta português de hoje que, construtivamente, seja de confiança para além do soneto.

Ora, feitos estes reparos analíticos quanto ao estado mental dos nossos homens de talento, é inútil alongar este breve estudo, tratando com igual pormenor a maioria do escol. Se o escol do escol é assim, como não será o não-escol do escol? Há, porém, um característico comum a ambos esses elementos da nossa camada mental superior, que aos dois irmana, e, irmanados, define: é a ausência de ideias gerais e, portanto, do espírito crítico e filosófico que provém de as ter. O nosso escol político não tem ideias excepto sobre política, e as que tem sobre política são servilmente plagiadas do estrangeiro - aceites, não porque sejam boas, mas porque são francesas ou italianas, ou russas, ou o quer que seja. O nosso escol literário é ainda pior: nem sobre literatura tem ideias. Seria trágico, à força de deixar de ser cómico, o resultado de uma investigação sobre, por exemplo, as ideias dos nossos poetas célebres. Já não quero que se submetesse qualquer deles ao enxovalho de lhe perguntar o que é a filosofia de Kant ou a teoria da evolução. Bastaria submetê-lo ao enxovalho maior de lhe perguntar o que é o ritmo.

* In "Portugal entre Passado e Futuro"

MEMÓRIA OPORTUNA O problema


"A ironia é isto. Para a sua realização exige-se um domínio absoluto da expressão, produto de uma cultura intensa; e aquilo a que os ingleses chamam detachment — o poder de afastar-se de si mesmo, de dividir-se em dois..."
O Provincianismo Português (I)

O provincianismo vive da inconsciência; de nos supormos civilizados quando o não somos


Fernando Pessoa *

Se, por um daqueles artifícios cómodos, pelos quais simplificamos a realidade com o fito de a compreender, quisermos resumir num síndroma o mal superior português, diremos que esse mal consiste no provincianismo. O facto é triste, mas não nos é peculiar. De igual doença enfermam muitos outros países, que se consideram civilizantes com orgulho e erro.

O provincianismo consiste em pertencer a uma civilização sem tomar parte no desenvolvimento superior dela — em segui-la pois mimeticamente, com uma subordinação inconsciente e feliz. O síndroma provinciano compreende, pelo menos, três sintomas flagrantes: o entusiasmo e admiração pelos grandes meios e pelas grandes cidades; o entusiasmo e admiração pelo progresso e pela modernidade; e, na esfera mental superior, a incapacidade de ironia.

Se há característico que imediatamente distinga o provinciano, é a admiração pelos grandes meios. Um parisiense não admira Paris; gosta de Paris. Como há-de admirar aquilo que é parte dele? Ninguém se admira a si mesmo, salvo um paranóico com o delírio das grandezas. Recordo-me de que uma vez, nos tempos do "Orpheu", disse a Mário de Sá-Carneiro: "V. é europeu e civilizado, salvo em uma coisa, e nessa V. é vítima da educação portuguesa. V. admira Paris, admira as grandes cidades. Se V. tivesse sido educado no estrangeiro, e sob o influxo de uma grande cultura europeia, como eu, não daria pelas grandes cidades. Estavam todas dentro de si".

O amor ao progresso e ao moderno é a outra forma do mesmo característico provinciano. Os civilizados criam o progresso, criam a moda, criam a modernidade; por isso lhes não atribuem importância de maior. Ninguém atribui importância ao que produz. Quem não produz é que admira a produção. Diga-se incidentalmente: é esta uma das explicações do socialismo. Se alguma tendência têm os criadores de civilização, é a de não repararem bem na importância do que criam. O Infante D. Henrique, com ser o mais sistemático de todos os criadores de civilização, não viu contudo que prodígio estava criando — toda a civilização transoceânica moderna, embora com consequências abomináveis, como a existência dos Estados Unidos. Dante adorava Vergilio como um exemplar e uma estrela, nunca sonharia em comparar-se com ele; nada há, todavia, mais certo que o ser a "Divina Comédia" superior à "Eneida". O provinciano, porém, pasma do que não fez, precisamente porque o não fez; e orgulha-se de sentir esse pasmo. Se assim não sentisse, não seria provinciano.

É na incapacidade de ironia que reside o traço mais fundo do provincianismo mental. Por ironia entende-se, não o dizer piadas, como se crê nos cafés e nas redações, mas o dizer uma coisa para dizer o contrário. A essência da ironia consiste em não se poder descobrir o segundo sentido do texto por nenhuma palavra dele, deduzindo-se porém esse segundo sentido do facto de ser impossível dever o texto dizer aquilo que diz. Assim, o maior de todos os ironistas, Swift, redigiu, durante uma das fomes na Irlanda, e como sátira brutal à Inglaterra, um breve escrito propondo uma solução para essa fome. Propõe que os irlandeses comam os próprios filhos. Examina com grande seriedade o problema, e expõe com clareza e ciência a utilidade das crianças de menos de sete anos como bom alimento. Nenhuma palavra nessas páginas assombrosas quebra a absoluta gravidade da exposição; ninguém poderia concluir, do texto, que a proposta não fosse feita com absoluta seriedade, se não fosse a circunstância, exterior ao texto, de que uma proposta dessas não poderia ser feita a sério.

A ironia é isto. Para a sua realização exige-se um domínio absoluto da expressão, produto de uma cultura intensa; e aquilo a que os ingleses chamam detachment — o poder de afastar-se de si mesmo, de dividir-se em dois, produto daquele "desenvolvimento da largueza de consciência" em que, segundo o historiador alemão Lamprecht, reside a essência da civilização. Para a sua realização exige-se, em outras palavras, o não se ser provinciano.

O exemplo mais flagrante do provincianismo português é Eça de Queirós. É o exemplo mais flagrante porque foi o escritor português que mais se preocupou (como todos os provincianos) em ser civilizado. As suas tentativas de ironia aterram não só pelo grau de falência, senão também pela inconsciência dela. Neste capítulo, "A Relíquia", Paio Pires a falar francês, é um documento doloroso. As próprias páginas sobre Pacheco, quase civilizadas, são estragadas por vários lapsos verbais, quebradores da imperturbabilidade que a ironia exige, e arruinadas por inteiro na introdução do desgraçado episódio da viúva de Pacheco. Compare-se Eça de Queirós, não direi já com Swift, mas, por exemplo, com Anatole France. Ver-se-á a diferença entre um jornalista, embora brilhante, de província, e um verdadeiro, se bem que limitado, artista.

Para o provincianismo há só uma terapêutica: é o saber que ele existe. O provincianismo vive da inconsciência; de nos supormos civilizados quando o não somos, de nos supormos civilizados precisamente pelas qualidades por que o não somos. O princípio da cura está na consciência da doença, o da verdade no conhecimento do erro. Quando um doido sabe que está doido, já não está doido. Estamos perto de acordar, disse Novalis, quando sonhamos que sonhamos.

* In "Portugal entre Passado e Futuro"