terça-feira, 27 de julho de 2010

COM A DEVIDA VÉNIA Academia e Diplomacia

"Não é mistério, portanto, que entre as fileiras da ABL estejam sempre membros da diplomacia brasileira, quase sempre aposentados. São eles que, geralmente, trazem para a academia o interesse pelos temas de política internacional.
O estado das Letras

e as letras do Estado

As Letras e o Estado ainda não conseguem questionar e problematizar seus consensos históricos

Recensão no MUNDORAMA *

Foram lançados os dois últimos números digitais da Revista Brasileira da Academia Brasileira de Letras (ABL). Bem escrita e editada, definitivamente está entre as melhores revistas em circulação no país, considerando especialmente o seu caderno “Prosa”. A ABL surpreende e espanta os que pensam que a instituição é o bastião do conservadorismo. Na verdade, ela está na vanguarda no mundo virtual, com seus vetustos membros usando o Kindle e até promovendo um concurso de microcontos pelo Twitter.

Mas o que a revista tem a ver com a política externa brasileira ou com a política internacional em um sentido mais amplo?

Uma rápida leitura da biografia dos fundadores da Academia possibilitará a identificação de vários diplomatas ou comentadores da política internacional entre as fileiras dos imortais — Clóvis Beviláqua, Domício da Gama, Eduardo Prado, Graça Aranha, Joaquim Nabuco e Oliveira Lima. Em um país de iletrados e sem oportunidades, era natural que fosse na magistratura e na diplomacia que muitos escritores, frustrados ou realizados, aboscassem as patacas de maneira a garantir a sobrevivência. Há também a convergência de composição. No ofício da diplomacia, busca-se a mesma precisão das palavras, a boa trama da narrativa e a clareza da argumentação que perpassa vários gêneros e estilos literários (o grande historiador Gordon A. Craig não perdia a oportunidade para declamar o prazer que tinha em ler correspondências diplomáticas).

Não é mistério, portanto, que entre as fileiras da ABL estejam sempre membros da diplomacia brasileira, quase sempre aposentados. São eles que, geralmente, trazem para a academia o interesse pelos temas de política internacional.

Nos dois últimos números da revista temos exemplo claro disso. No número 61, há artigo sobre Euclides da Cunha e o Itamaraty, de Afonso Arinos Filho. No número seguinte está o discurso do atual chanceler, Celso Amorim, sobre “as duas vidas de Nabuco: o reformador e o diplomata“, seguido pelo discurso de Arinos intitulado “Itamaraty: a herança gloriosa“.

O mais admirável em todos os textos da revista sobre a história diplomática do Brasil são os temas e a abordagem: históricos, falam de desafios e de homens que viveram para transformar o país . O grande perigo ao falarmos particularmente do homem de estado e de seus desafios é cairmos na mais pura hagiografia e é, aqui, que, acredito, os textos publicados pela revista pecam. São geralmente narrativas “enlatadas”, que perpetuam especialmente a narrativa oficial do Itamaraty acerca da história diplomática do Brasil.

O caso do relacionamento de Joaquim Nabuco com o Barão do Rio Branco, assunto tratado nos textos de Amorim e Arinos, é bastante instrutivo. Temos, nos artigos, a convencional cortesia, veneração e louvação que conformam a apoteose oficial, quando sabemos pelo percuciente trabalho de Angela Alonso que o relacionamento entre as duas personalidades é bem mais problemático do que a narrativa protocolar.

Infelizmente, as Letras e o Estado ainda não conseguem questionar e problematizar seus consensos históricos.

*Divulgação Científica em Relações Internacionais

domingo, 25 de julho de 2010

COM A DEVIDA VÉNIA Também há coisa parecida por cá

A propósito de um recente decreto do presidente do Brasil que doa à Autoridade Nacional Palestina para a reconstrução da Faixa de Gaza, um montante até milhões de reais... escreve Paulo Roberto de Almeida no seu blogue Diplomatizzando, o que se transcreve com a devida vénia.

Por cá já houve coisas deste género em África, mas nunca se sabe, pelo que a fábula mostra que...
Diplomacia da generosidade
(e como...)

Mais trabalho para os tribunais de contas

Paulo Roberto de Almeida *

Interessante essa lei, e essa autorização. Ao que consta, a Faixa de Gaza não se encontra exatamente sob a responsabilidade da Autoridade Nacional Palestina, e sim do Hamas, que expulsou, militarmente, todos os antigos representantes da ANP naquele território.

Como garantir, então, que esses recursos, doados à ANP, serão efetivamente empregados na reconstrução de Gaza?

Nunca antes neste país uma "doação" se faz de forma tão genérica, tão vaga, sem qualquer controle sobre sua utilização efetiva.

Que autoridades brasileiras de controle farão o seguimento do emprego dessas verbas?

O TCU normalmente audita também as contas do Ministério das Relações Exteriores e das embaixadas, à sua escolha.

Será que o TCU vai auditar as contas da Autoridade Nacional Palestina, e as obras na Faixa de Gaza?


Presidência da República
Casa Civil
Subchefia para Assuntos Jurídicos

LEI Nº 12.292, DE 20 DE JULHO DE 2010.

Autoriza o Poder Executivo a realizar doação para a reconstrução de Gaza.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1o Fica o Poder Executivo autorizado a doar recursos à Autoridade Nacional Palestina, em apoio à economia palestina para a reconstrução de Gaza, no valor de até R$ 25.000.000,00 (vinte e cinco milhões de reais).

Parágrafo único. A doação será efetivada mediante termo firmado pelo Poder Executivo, por intermédio do Ministério das Relações Exteriores, e correrá à conta de dotações orçamentárias daquela Pasta.

Art. 2o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 20 de julho de 2010; 189o da Independência e 122o da República.

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Celso Luiz Nunes Amorim
Paulo Bernardo Silva
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 *Paulo Roberto de Almeida é doutor em Ciências Sociais, com vocação acadêmica voltada para os temas de relações internacionais, de história diplomática do Brasil em particular e para questões gerais do desenvolvimento económico. Membro da carreira diplomática brasileira desde 1977.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

COM A DEVIDA VÉNIA Celso Lafer

"Lampreia tem muita clareza sobre a relevância da política externa para o desenvolvimento brasileiro. Esta clareza permeia a sua narrativa. Daí o significado que atribui à diplomacia econômica e por que suas importantes considerações sobre a política externa independente de Afonso Arinos e San Tiago Dantas ? que marcaram o início de sua carreira ? são antecedidas por observações sobre a Operação Pan-Americana, de Juscelino Kubitschek, e de como seu chanceler Horácio Lafer a ela conferiu a linha de uma diplomacia operacionalmente voltada para o desenvolvimento."

Publicado em O Estado de S. Paulo, 18 julho 2010.
A lição das memórias

de Lampreia

Dizia o padre Antonio Vieira: "Perdem-se as repúblicas porque os seus olhos veem o que não é, e não veem o que é."

CELSO LAFER *

Em 1999 Luiz Felipe Lampreia publicou Diplomacia Brasileira, uma seleção de textos elaborados em função das suas responsabilidades como chanceler de Fernando Henrique Cardoso. Precedeu-os todos de excelentes notas introdutórias, explicativas dos contextos das suas palavras e razões. Observou que estava no tempo da ação diplomática e, por isso, seria prematuro escrever memórias. Com efeito, no tempo da ação diplomática, as palavras de um chanceler estão direcionadas para a ação. Não são memórias. São memoriais que dão conta do ofício de orientar, definir e explicar a política externa.

Outra é a natureza do seu recém-publicado O Brasil e os Ventos do Mundo ? Memórias de Cinco Décadas na Cena Internacional, que, como toda narrativa autobiográfica, é fruto de um parar para pensar, organizador do significado de um percurso existencial. A palavra, neste caso, tem outros propósitos. Insere-se no tempo da meditação sobre a experiência vivida. Elucida o modo de ser da pessoa e a sua maneira de agir perante desafios e oportunidades. No caso das memórias de Lampreia, o foco da narrativa é dado pela sua reflexão sobre a política externa brasileira, de cuja execução participou no arco do tempo dos vários estágios de uma carreira diplomática que culminou com os seus seis anos de chanceler do governo FHC.

As memórias de Lampreia explicitam o seu modo de ser como diplomata, cabendo destacar, entre os traços do seu agir, a nitidez dos propósitos, a segurança no encaminhamento dos assuntos e a capacidade de hierarquizar o relevante na agenda internacional. Um bom exemplo dessa capacidade é o destaque que dá, na conclusiva avaliação do cenário contemporâneo, às mudanças climáticas como a questão central do nosso tempo e à proliferação nuclear como o maior perigo da atualidade. Em síntese, Lampreia não perde o rumo, pois não confunde o acidental com o importante e não se atrapalha com os ventos do mundo que, no correr da sua vida, sopraram em muitas direções. Por isso pôde ser, na condução do Itamaraty, um destacado e qualificado colaborador de FHC.

Lampreia tem muita clareza sobre a relevância da política externa para o desenvolvimento brasileiro. Esta clareza permeia a sua narrativa. Daí o significado que atribui à diplomacia econômica e por que suas importantes considerações sobre a política externa independente de Afonso Arinos e San Tiago Dantas ? que marcaram o início de sua carreira ? são antecedidas por observações sobre a Operação Pan-Americana, de Juscelino Kubitschek, e de como seu chanceler Horácio Lafer a ela conferiu a linha de uma diplomacia operacionalmente voltada para o desenvolvimento.

São altamente interessantes as observações de Lampreia sobre o choque da alta de preço do petróleo dos anos 70, que evidenciaram vulnerabilidades energéticas do Brasil, que ele viu de perto participando de comitivas brasileiras à Líbia, ao Iraque, ao Irã e à Arábia Saudita. Novas vulnerabilidades trazidas pelos ventos do mundo ele as viveu como chanceler, em razão das crises financeiras internacionais que impactaram o real. Daí a implícita crítica que faz a um voluntarismo diplomático que não estabelece prioridades e não equaciona meios e fins.

Nesse sentido são muito esclarecedoras as páginas dedicadas ao pragmatismo responsável de Azeredo da Silveira, de quem foi um dedicado colaborador e admirador. Destaco sua análise do personagem e da estratégia que definiu para sair de uma configuração de vulnerabilidades e dependências. Essa estratégia passava por boas relações com os EUA e pelo reforço das relações "diagonais", tanto as existentes com o Japão, a França, a Grã-Bretanha e a Alemanha quanto as novas que encetou com a China e a África.

Em matéria de diplomacia econômica, são muito relevantes as passagens sobre a sua atuação como embaixador em Genebra nas negociações que levaram à conclusão da Rodada Uruguai do Gatt; sobre a prioridade que, como chanceler, conferiu à Organização Mundial do Comércio (OMC); como tratou dos problemas do Mercosul, conduziu as batalhas da Alca e encarou as negociações com a União Europeia.

O pano de fundo das memórias de Lampreia articula um confronto, ora implícito, ora explícito, entre a sua visão da diplomacia e a política externa do governo Lula. Da sua viagem ao Líbano extrai a conclusão de que o Oriente Médio é um enigma político, talvez indecifrável, e que, bilateralmente, não se pode fazer muito, pois os riscos são enormes e a região está longe da esfera de influência do Brasil. Do seu trato com temas nucleares, da sua análise dos entendimentos com a Argentina, que levaram ao fim do risco de uma corrida armamentista nuclear na nossa região, e dos motivos que guiaram a adesão do Brasil ao Tratado de Não-Proliferação ? que ele conduziu como chanceler ? provém sua avaliação crítica da conduta do Irã e de por que não faz sentido, para o Brasil, respaldar um país e um regime que praticam um perigoso jogo duplo.

Das inúmeras e ricas análises da sua experiência, quero mencionar apenas duas passagens que são exemplos de como encaminhar tensões políticas no contexto da nossa vizinhança, que contrastam com o que vem sendo feito atualmente. A primeira é o relato do seu período como embaixador no Suriname e de como o Brasil logrou afastar o regime de Bouterse, no período da guerra fria, das tensões da influência cubana e endereçou Paramaribo para uma construtiva e cooperativa aproximação com o País. A segunda é o circunstanciado relato do papel mediador do Brasil no conflito territorial entre Peru e Equador, que é altamente esclarecedor do que deve fazer um terceiro em prol da paz para deslindar um histórico e difícil contencioso.

Dizia o padre Antonio Vieira ? e esta é a lição de Lampreia: "Perdem-se as repúblicas porque os seus olhos veem o que não é, e não veem o que é."

    *Professor titular da Faculdade de Direito da USF, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Brasileira de Letras, foi ministro das Relações Exteriores no governo de FFHC