terça-feira, 28 de outubro de 2008

Pressente-se no ar uma lógica de Lampedusa

Explicitanto: « Infelizmente, pressente-se no ar uma lógica de Lampedusa: mudar alguma coisa para que tudo continue na mesma.»

Mas, «sem uma consagração de países “do Sul” no eixo de uma nova ordem internacional, sem uma revolução nas estruturas multilaterais que as coloque em consonância com os equilíbrios reais do mundo contemporâneo, estar-se-á, simplesmente e uma vez mais, a enterrar a cabeça na areia.»

Artigo destinado ao Brasil (publicado na Gazeta Mercantil) mas, sendo artigo definido, com muito ou bastante para Portugal reter.


Viva a crise?


Francisco Seixas da Costa*


Por todo o mundo, o ano de 2008 vai encerrar num mar de incertezas, provocadas por uma grave ruptura de confiança no sistema internacional, a qual acabou por colocar em causa a fiabilidade dos próprios mecanismos político-económicos de regulação a nível global, muitos deles com mais de meio século de existência.

Ilusões à parte, todos os países parece irem pagar, embora em escala diversa, uma factura pelos efeitos desta crise, que vai colocar em cheque os respectivos processos de desenvolvimento e arrastar consigo consequências sociais e políticas, de uma dimensão por ora difícil de prever. Não havendo “ilhas” no mundo global, restam almofadas nacionais de atenuação de impactos, cuja eficácia variará sempre na razão inversa do tempo que a crise durar.

Os sinais parecem mostrar que não estamos perante um tempo de mero ajustamento e reabsorção de uma instabilidade conjuntural, mas sim em face da falência de parte importante de um modelo económico que, por muitos iluminados, era tido por modelar e eterno, talvez mesmo “o fim da História”… Ironicamente, as receitas para afrontar esta instabilidade não saíram da cultura económica até agora dominante, mas de uma terapêutica cujos fundamentos se situam nos seus antípodas e que certos meios tinham colocado já no caixote do lixo da História.

A grande incógnita está agora em saber se este choque de realidade tem condições para gerar uma vontade colectiva, susceptível de motivar uma reforma drástica das principais instituições que tutelam o sistema internacional – ONU, Bretton Woods, Organização Mundial de Comércio e até os mecanismos de Quioto – ou se, muito simplesmente, vamos assistir a um forçado consenso em torno de remendos pontuais, fruto do desejo de preservar, a todo o custo, estatutos adquiridos. Infelizmente, pressente-se no ar uma lógica de Lampedusa: mudar alguma coisa para que tudo continue na mesma.

Como eixos centrais da economia global de mercado, a União Europeia e os Estados Unidos têm, no modo como souberem posicionar-se perante esta crise, um especial teste de credibilidade. Se as suas lideranças se sentirem tentadas a gizar uma espécie de duopólio para a gestão futura do sistema, convocando terceiros para desempenhar apenas papéis secundários, todos estaremos a adiar uma solução racional e sustentável. Se, ao invés, favorecerem soluções inclusivas, que lhes podem garantir importantes alianças na gestão de novos surtos de instabilidade, poderemos estar a dar os primeiros passos no caminho para um novo sistema político-económico internacional. Esta é a posição que um país como Portugal tem vindo a afirmar, assumindo-a como a única que é susceptível de garantir uma resposta à altura dos riscos que nos são comuns.

O Brasil aparece, neste contexto, como um actor com óbvio direito a reivindicar um papel de relevo neste novo cenário, a par de outras grandes economias emergentes. A sua dimensão relativa, a sua liderança em modelos de modernidade energética e o elevado sentido de responsabilidade que tem demonstrado no exercício da sua gestão financeira interna, bem como na sua acção no quadro multilateral, em vários tabuleiros, assim o justificam plenamente. Uma maior inclusão do Brasil nos mecanismos decisórios da governança global é, a nosso ver, uma condição indispensável para a relegitimação política e para a salvaguarda operativa desses mesmos mecanismos. Sem uma consagração de países “do Sul” no eixo de uma nova ordem internacional, sem uma revolução nas estruturas multilaterais que as coloque em consonância com os equilíbrios reais do mundo contemporâneo, estar-se-á, simplesmente e uma vez mais, a enterrar a cabeça na areia.

Há crescentes sinais de que o G8, o grupo dos países de economia de mercado mais industrializados, pode vir a aparecer colocado no centro deste esforço de racionalização do sistema internacional, por corresponder à maioria dos poderes fácticos que têm condições de fazer pesar a sua vontade sobre algumas das instituições que hoje enquadram tal sistema. Porém, o G8, tal e qual existe, é hoje uma estrutura “nortenha”, onde preponderam alguns óbvios responsáveis por esta crise, por acção ou omissão, e onde não têm assento algumas economias emergentes, sem a contribuição das quais todas as hipóteses de solução não passarão de falácias. A questão está em saber-se se haverá, ou não, coragem para mudar este paradigma.

Um clássico em desuso, que alguns, discretamente, terão ido buscar às prateleiras nestes dias turbulentos, escreveu que “a crise é parteira da História”. Esperemos que, ao menos desta vez, ele venha a ter razão.

* Embaixador, Chefe da Missão Diplomática de Portugal em Brasília